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Crescemos a pensar que as nossas mães sempre foram mães. Como se nunca tivessem existido antes de nós. Mas antes de nos segurarem ao colo, foram filhas. Também a precisar de cuidado, a procurar amor, a carregar ausências. E antes delas, houve outras mulheres - mães e filhas -ligadas por uma linha que atravessa gerações.
O que passa através dessa linha entre gerações? O que herdamos sem sequer percebermos?
O que passa de geração em geração
Algumas heranças vemos ao espelho – o cabelo escuro da avó, o sorriso da mãe - outras são invisíveis, mas sentimos na pele – a forma como lidamos com a dor, o medo de falhar, a necessidade de agradar, a dificuldade em pedir ajuda.
O que carregamos é muitas vezes fruto colhido antes da nossa existência e a terapia ensina-nos isso: que as nossas feridas emocionais não começam em nós. Crescemos a acreditar que certas verdades sobre nós mesmas são imutáveis (exemplo: "Eu sou assim, sempre fui assim") mas muitas não nasceram connosco. São ecos de histórias que começaram muito antes de nós.
Talvez a nossa mãe tenha aprendido que mostrar fragilidade era um risco. Talvez tenha crescido num mundo onde o amor era condicional e escasso. Talvez tenha sido ensinada a engolir as lágrimas, a ser forte e a cuidar de todos menos de si mesma.
E sem que nos apercebamos, herdamos e carregamos partes dessa história.
Quantas das nossas crenças sobre amor, sacrifício ou resiliência vêm da nossa mãe? Quantas das nossas reações emocionais não são realmente nossas, mas reflexos do que vimos nelas e elas viram nas mães delas?
O momento em que vemos a nossa mãe como mulher
Há um momento na nossa vida em que a nossa mãe deixa de ser apenas “mãe” e se revela também como mulher: com medos, dores, dúvidas e feridas que talvez nunca tenham sido curadas.
Esse momento raramente acontece de repente. É um processo subtil, feito de pequenos gestos e revelações: quando percebemos que ela não tem todas as respostas, quando nos damos conta das suas fragilidades, quando a ouvimos falar sobre o passado e entendemos que também teve sonhos adiados, decisões difíceis ou momentos de solidão, no reflexo inesperado da sua fragilidade.
O choque inicial pode trazer desconforto. Afinal, crescemos a vê-la como um pilar inquebrável, a pessoa que nos ensinou o certo e o errado. Mas um dia, deixamos de a olhar de baixo para cima e passamos a vê-la de frente. E isso muda tudo.
A terapia ensina-nos que muitas das nossas crenças mais profundas (sobre nós mesmas e sobre o mundo) nascem na infância. Quando somos crianças, absorvemos padrões emocionais como autênticas esponjas: captamos gestos, silêncios, medos e formas de amar. Olhamos para a nossa mãe, e nela aprendemos o que ser, o que sentir, quanto merecer.
Se ela acreditava que era preciso esconder a dor, então é possível que tenhamos aprendido a engolir as nossas emoções. Se ela nunca se sentiu suficiente, talvez tenhamos herdado a mesma insegurança, mesmo sem perceber.
Este é um ponto de viragem. Pode ser doloroso, porque muitas vezes descobrimos falhas, ausências e escolhas que nos magoaram. Mas também pode ser libertador.
Compreender a nossa mãe não significa desculpar tudo o que nos feriu. Mas talvez signifique perceber que as suas dores também a moldaram, antes mesmo de ela nos moldar a nós.
O que fazer com essa herança?
Algumas dores foram-nos passadas sem escolha, mas transformar aquilo que herdamos pode ser uma escolha nossa.
Herdamos gestos, crenças, silêncios. Repetimos padrões sem nos darmos conta. Carregamos pesos.
Mas há um momento em que nos deparamos com uma pergunta inevitável: até onde a história da nossa família define a nossa própria história?
Nesse momento podemos decidir: O que quero manter? O que quero curar? O que quero transformar?
Porque há legados que valem a pena honrar—o amor incondicional, a resiliência e a força que atravessa gerações. E há outros que nos cabe deixar para trás—o medo de não ser suficiente, o silêncio imposto, a culpa herdada.
Podemos ser o ponto de viragem da história das mulheres da nossa família.
A primeira que aprendeu a colocar limites sem se sentir egoísta. A primeira que disse em voz alta o que antes era silenciado. A primeira que escolheu sentir sem medo, sem se esconder.
Porque herança não é destino nem sentença. Aquilo que recebemos pode ser reescrito. E, talvez, ao curarmos as feridas que nos foram passadas, estejamos a libertar também as mulheres que vieram antes de nós - e as que virão depois.
Um convite para ti
Se te fizer sentido, deixo-te um convite. Pega num papel e numa caneta.
Escreve uma carta para a tua mãe. Mas não para a "mãe" que conheces hoje. Escreve para a mulher que ela foi antes de se tornar tua mãe.
Se pudesses perguntar-lhe algo, o que seria?
Se pudesses dizer-lhe algo, o que dirias?
Talvez descubras que compreender a tua mãe é, de alguma forma, compreender-te a ti mesma.
📩 Queres contar-me?
Se quiseres, envia-me as tuas reflexões sobre este texto para o meu email saralouropsicologia@gmail.com Vou adorar saber o que o texto despertou em ti.